As ruas de Belém, suas avenidas e travessas, durante a maior parte dos dias do ano são sinônimos de rotina corrida, ansiedade para se chegar ao trabalho, insegurança e violência e, porque não, solidão. Na maior parte do ano, nas ruas de Belém somos uma enorme “multidão solitária” – como dizia Ernst Hemmingway -, caminhamos como um rebanho sem pastor.

Mas durante o mês de Outubro, estas mesmas ruas transparecem um outro significado. Durante a festividade do Círio de Nazaré, a engarrafada Almirante Barroso torna-se procissão organizada. Ananindeua, Marituba e Icoaraci, cidades dormitórios de Belém, estão despertas. A Baía do Guajará inunda-se de barcos, tal como uma esquadra organizada. Na noite do sábado que antecede o Círio, e no domingo da procissão, pode-se caminhar pelas ruas do centro da cidade com a certeza de que todos tem o mesmo objetivo: seguir a Virgem de Nazaré.

No mês de Outubro, em Belém já não somos uma “multidão solitária”, transitando pela cidade tal como ovelhas sem pastor; mas somos uma multidão guiada por uma Mãe, seguindo uma só fé, caminhando em direção ao Filho, que também é Pai. Por meio da Mãe, somos todos uma só Família em Belém, unidos ao Pai e ao Filho.

Como é possível que coisas tão cotidianas e sem sentido, como as ruas da capital da Amazônia, possam ser revestidas de tanto significado durante o Círio de Nazaré? O filósofo romeno, Mircea Eliade, em sua obra “O Sagrado e o Profano: a essência das religiões” (1996) nos ajuda a entender isso ao falar do “tempo profano” e do “tempo sagrado”.

Segundo ele, O “tempo profano” é aquele do dia-a-dia, com sua rotina mecânica, prática e técnica, onde a maioria das horas escorre de forma contínua, cansativa e quase sem nenhum sentido. As ruas de Belém, no “tempo profano”, são sempre a mesma coisa, com suas mesmas obrigações, perigos e estresse. Porém, não é assim durante a festividade do Círio de Nazaré. Nesses dias entra em jogo um outro tempo, o que Eliade chama de “Tempo Sagrado”, que traz consigo um outro espaço repleto de sentido. Encontrar a cidade cheia, ver o fluxo de pessoas nas mesmas ruas do dia-a-dia, escutar os cantos marianos entoados em todo lugar, sentir o cheiro da maniçoba fervendo no fogo, comunicam uma coisa: “tira as sandálias, porque pisas em solo santo” (Ex 3, 5), em outras palavras, “atento! Porque aqui o tempo é outro. Já não mais o ‘tempo profano’, mas um ‘tempo sagrado’”. Em palavras de Eliade: “Toda festa religiosa, todo tempo litúrgico, representa a reatualização de um evento sagrado (…). Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal ‘ordinária’ e a reintegração no tempo mítico reatualizado pela própria festa. Por consequência, o tempo sagrado é indefinitivamente recuperável, indefinitivamente repetível” (1996, p.63).

Este “tempo sagrado”, que irrompe a rotina profana e se repete a cada ano durante o Círio de Nazaré, faz com que a cada mês de Outubro o paraense experimente de forma pessoal aquilo que o filósofo Max Horkheimer definiu, em entrevista concedida a revista “Der Spiegel” (nº 33, 1969, pp. 108-109), como “A saudade do totalmente outro”.

Por Arnin Braga- Professor da Faculdade Católica de Belém

Fotografia: Jessica Bendelak