Todos nós pouco ou muito já experienciamos o choque cultural que caracteriza o fenômeno do estranhamento que ocorre entre duas culturas, quando nos encontramos com o diferente de nós mesmos no outro ou nos grupos sociais diferentes do nosso. O choque cultural não necessariamente é maléfico, mas pode gerar desconforto pela situação atípica sobretudo no primeiro momento. Decorrente do choque cultural, duas atitudes podem mover-se: atos de intolerância e discriminação ou de assimilação, convivência e enriquecimento recíproco.

Dentre as várias situações, tem-se como exemplo o direito que todo ser humano tem de ter ou não uma religião, de mudar de religião ou crença e de viver essa religião ou crença em público ou em privado, individual ou coletivamente pela prática, ensino, culto e ritos. Esse direito está expresso no artigo 18 da Declaração Universal das Nações Unidas. Também a Igreja Católica defende o direito à liberdade religiosa, sobretudo na declaração Dignitatis Humanae do Concilia Vaticanos II:

“Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação, mas levados pela consciência do dever. Requerem também que o poder público seja delimitado juridicamente, a fim de que a honesta liberdade das pessoas e das associações não seja restringida mais do que é devido. Esta exigência de liberdade na sociedade humana diz respeito principalmente ao que é próprio do espírito, e, antes de mais, ao que se refere ao livre exercício da religião na sociedade. Considerando atentamente estas aspirações, e propondo-se declarar quanto são conformes à verdade e à justiça, este Concílio Vaticano investiga a sagrada tradição e doutrina da Igreja, das quais tira novos ensinamentos, sempre concordantes com os antigos” (DDH. 1).

Nesta perspectiva a liberdade de crença e de culto é garantida pela atual Constituição brasileira promulgada em 1988, nos artigos 5.º e 19.º, e pela Lei n.º 7716 de

1989 que estabelece como crime a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou nacionalidade.

As políticas públicas voltadas para o combate a discriminação iniciaram-se pela questão racial, seguida de gênero e mais recentemente da religiosa. Em 1989 foi criado um órgão federal responsável por implementar políticas públicas contra a discriminação. Vale destacar que em 22 de dezembro de 2003, durante o seu primeiro mandato, o presidente Lula sancionou a lei que garante personalidade jurídica às organizações religiosas, e foi durante o seu governo que aconteceu o maior número de concessão de rádios evangélicas no país.

Em 2015 foi criado, neste âmbito, um órgão dedicado especificamente à discriminação religiosa, a Assessoria de Diversidade Religiosa e Direitos Humanos, indicando uma atenção crescente para com esta questão. Contudo, com a crise financeira que afetou o setor público brasileiro na última década, tanto o Governo federal como os governos estaduais tenderam a reduzir as suas atividades nesse campo, extinguindo os órgãos voltados à defesa da diversidade religiosa. Com isso, a Assessoria de Diversidade Religiosa e Direitos Humanos do Governo federal foi extinta. Posteriormente, em 2019 no mandato do presidente Jair Bolsonaro, foi criada a Coordenação de Liberdade de Religião ou Crença, Consciência, Expressão e Acadêmica.

Em 12 de janeiro de 2023 o atual presidente da República, Luíz Inácio Lula da Silva, assinou a lei 14.532 que torna crime atacar ou tentar fechar igrejas ou locais de culto, reforçando o compromisso com a sociedade brasileira na conquista das garantias comuns ao exercício da liberdade religiosa. A lei também protege o direito fundamental do povo brasileiro de professar livremente sua fé e espiritualidade seja qual for a religião.

Há 60 anos atrás iluminados pela Palavra de Deus os bispos reunidos no Concílio Vaticanos II profeticamente foram claros numa matéria que somente hoje no Brasil está tomando corpo de reconhecimento jurídico declarando que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa, a qual consiste no seguinte:

“Todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer. Este direito da pessoa humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido que se torne um direito civil.”

Por isso o Concilio Vaticano II continua apontando metas e luzes para a nossa prática humana e construção do Reino dos Céus sobre a terra. Nesta esteira no domingo 22 de janeiro do corrente ano na praça da República em Belém foi realizado um Ato pelo o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Este dia foi sancionado pela Lei n. 11.635, de 2007, em homenagem a Mãe de santo Dona Gilda que sofreu “violência” a fim de promover, ampliar e dar visibilidade à questão.

 

REFERÊNCIAS

 

CHARLES ALBERTO BARBOSA DE SOUZA – Doutorando em antropologia pelo Instituto Universitário SOPHIA de Florença (IT) é professor de Antropologia e Cultura Afro-brasileira e Etnias da Faculdade Católica de Belém, Sociólogo da Equipe de Pesquisa do Núcleo Setorial de Planejamento da Secretaria de Educação Municipal de Belém Membro do Conselho Amazônico de Igrejas Cristãs e do Movimento dos Focolares.

8 Comentários

  1. Jeferson Vieira Felix

    Diante do tema da liberdade religiosa, percebe-se que é algo exigido e fundado na própria dignidade da pessoa humana. Além do mais, como se nota, a Declaração Dignitatis Humanae, um documento do Concílio Vaticano II, destaca que é algo que deve ser assegurado e respeitado, pois a Revalação e a razão sustentam a liberdade religiosa. Afinal, ninguém deve ser coagido para agir contra a própria consciência e contra a própria vontade no que toca em materia religiosa, nem impedido de manifestar ou seguir determinado seguimento religioso de modo privado ou público. Ademais, as leis civis se ainda não asseguram ainda esse direito fundamental de todo ser humano, devem buscar garanti-lo (há países em que não é garantido).
    Tudo isso vai de encontro com o chamado etnocentrismo, pois para compreender a liberdade religiosa é preciso reconhecer que há um “outro” diferente do “eu”, que precisa ser respeitado em sua dignidade e liberdade tanto quanto o “eu”. A cultura e religião do outro, apesar de causar um choque ao nos encontrarmos com ela, não pode criar uma barreira que nos impede de estabelecer relação e tentar buscar nos enriquecer com aquilo que há de bom e legítimo no outro.
    Por fim, a Evangelização não se dá por proselitismo, como afirma o Papa Francisco, mas por atração. Cabe aos cristãos, que fazem parte da Igreja, terem firme a razão de sua esperança, para, no diálogo interreligioso, mostrar a força do Evangelho, menifestando o Reino de Deus anunciado e pregado por Jesus Cristo, que é capaz de encher a vida de sentido e alegria indizíveis. Jesus Cristo é a Luz dos povos (Lumen Gentium) e todos precisam conhecê-Lo sem ser cecerada a sua dignidade e liberdade, mas sim como uma Boa Notícia anunciada com alegria.

  2. Daniel Lopes Noé

    A quilo que dar sentido a vida das pessoas, no caso a religião, deve ser respeitado, já mais devemos descriminar as pessoas, simplesmente por não professar a mesma fé. O respeito não deve ser compreendido como uma aceitação ou adesão a determinado seguimento ou crença, mas algo que nos ajuda a enxergar a dignidade da pessoa humana do seu valor como pessoa.

  3. Erenilson Alves

    sobre a liberdade religiosa é importante destacar que é uma opção pessoal, uns escolhem serem ateus e outros seguem alguma denominação religiosa. Na ótica cristã quero destacar a partir do Evangelho que Jesus não força ninguém a segui-lo, Ele chama pelo nome e lança o convite “segue-me”, a resposta é sempre pessoal. Assim, outra pessoa não tem o direito de julgar a decisão daquela pessoa.

  4. WELLYNGTON SILVA

    Excelente texto.
    Acredito que o fundamental para garantir a liberdade religiosa, é iniciar por nós e por nossa forma de enxergar aquilo que é diferente da forma com que enxergamos o mundo, o outro e a sua forma de se relacionar com Deus. É preciso olhar o outro e a sua fé (ou falta dela) não a partir das nossas experiências ou com nossos óculos, fechados na nossa opinião. Mas pelo contrario, tentar enxergar o belo e o Bom que existe naquilo que difere do meu ambiente e da minha zona de conforto.

    WELLYNGTON SILVA
    7º PERIODO DE TEOLOGIA 2023.1
    FACBEL

  5. João Paulo Marques Cardoso

    O artigo é muito relevante para a vida acadêmica, demonstrando a importância da dignidade da pessoa, além disso, o movimento ecumênico busca reunir com os cristãos das diversas igrejas para dialogar, explicando a doutrina própria comunidade, promovendo e organizar campanhas de oração, caridade e solidariedade em comum. É conhecendo a realidade que se anuncia Jesus Cristo.
    Nome: João Paulo Marques Cardoso
    Turma: TEO07MA
    7º semestre de teologia,

  6. Pedro Lucas Sousa Lopes

    O referido texto é de uma ímpar relevância, tendo em vista a copiosa precariedade em que no mundo hodierno tal assunto ainda encontra-se imerso. Certamente produto de consciências apedeutas e má formadas, o que, por outro lado, urge de maneira translúcida a necessidade de tal discussão no âmbito acadêmico, social e eclesial. Por fim, como supradito nas linhas do artigo, é imprescindível encararmos as dessemelhanças não como uma ameaça ou reduzindo-a a um prisma meramente negativo, mas, com a atitude de quem pode ser enriquecido e ao mesmo tempo enriquecer.

    Nome: Pedro Lucas Sousa Lopes
    Turma: 7º Semestre de Teologia

  7. Pedro Neto Nery Almeida

    O presente artigo é muito interessante, pois o autor aborda a temática da liberdade da pessoa humana, em seus diversos aspectos como sociais, culturais, políticos e sobretudo a liberdade religiosa. Ao alertar para a importância de legitimar o “outro” e a sua dignidade de pessoa dotada de vontade. Portanto, é necessário em nossa sociedade olhar a liberdade de cada cidadão em optar por sua crença, sem ser oprimido e sem oprimir o diferente. Sendo assim, a Igreja em seu magistério deixa claro que toda e qualquer pessoa possa viver a sua crença sem ser violada em sua integridade. O autor do artigo ressalta também, o papel do Estado, esse com o mecanismo de dar a cada cidadão o seu direito a exercer a sua fé de maneira livre e consciente. Ademais, o artigo sobre a liberdade religiosa tem sua relevância pelo fato de garantir o direito de cada pessoa a exercer sua fé e de ter a opção, em escolher qual seguir. Por fim, a Igreja deve buscar o diálogo com outras denominações, mas deve ter sempre por guia a sua missão profética de anunciar a Jesus, que veio para dar o Reino dos Céus.

  8. Raimundo de Freitas Brito da Silva

    A deferência à Liberdade Religiosa é uma atitude profundamente cristã, como bem expressa a declaração Dignitatis Humanae acima citada. De fato, Nosso Senhor Jesus Cristo, em sua vida pública na terra, respeitou profundamente o homem em sua integralidade e escolha. A vivência Cristã, com isso, é iluminada e iluminadora, pois, na medida em que torna-se verdadeiramente cristã quando aceita o ‘outro’, no termo usado por Everardo P. Guimarães Rocha em sua obra “O que é o Etnocentrismo?”, também proclama ao mundo sua mensagem de amor pela vida humana. Este encontro com o diferente, recorda Guimarães Rocha, permite novas possibilidades para o “eu” e, mais especificamente no caso tratado no presente comentário, para o “eu” cristão, pois o Evangelho lido e refletido na Sagrada Escritura é encontrado de maneira prática, mesmo que germinal segundo a reflexão de São Justino, no bem que faz o meu próximo.